Parece que ao fim de 22 anos o governo acordou para a problemática da Carreira de Informática na Administração Pública. A promessa que tem vindo a ser adiada ano após ano concretiza-se, neste ano de 2023 (e esperemos nós, antes da dissolução do governo pela figura do Sr. Presidente da República). Refiro-me à revisão da Carreira de Informática da Administração Pública. Esta carreira teve o seu estatuto aprovado no ano 2001 pelo Decreto-Lei n.º 97/2001 de 26 de Março. Nesse ano, vivíamos a VIII legislatura, com um governo PS que, por um deputado, não obteve maioria absoluta. Este equilíbrio de forças, a existência de uma maioria relativa, é fulcral para a democracia e nele são tomadas os maiores avanços legislativos, ao contrário do que se verifica com uma maioria absoluta. No ano seguinte, em 2002, é definido o conteúdo funcional da carreira de informática pela portaria nº 358/2002 de 3 de abril, que definiu um salário mínimo de 34 8€ (fonte: pordata [1]). O informático tinha na sua Carreira 2 eixos: Técnico de informática e Especialista de informática, sendo integrado na carreira em que se adequasse, de acordo com a sua formação. É necessário clarificar que o índice pelo qual os informáticos da carreira de informática eram e são remunerados tem o nome de índice 100 e que a última vez que foi revisto foi em 2008 pela Portaria 1553C de 2008 para o valor de 342 €, como tal, tomarei o ano seguinte como o ano zero para os cálculos que apresento. Ano 2009, salário mínimo 450€.
Ano | Salário Mínimo | Indexante |
2009 | 450,00 | 343,28 |
De volta à Carreira de Informática, no ano de 2009 e ainda hoje em 2023, um informático da carreira de técnico de informática, Grau 1, Nível 1, receberia pelo índice, 332 [2, 3], ou seja, 332 vezes o valor do índice 100 a dividir por 100, contas feitas 343,28*332/100 = 1139,69€. Se traduzir este resultado em partes do salário mínimo, observo que em 2009, o técnico de informática recebe 2,53 SMN (Salário Mínimo Nacional). Aplico o mesmo raciocínio ao especialista de informática, por exemplo, Grau 1, Nível 2, 342,28*480/100 = 1647,74, ou seja, à data 3,66 SMN.
Técnico de informática Grau 1 | Nível | índice | Remuneração | ||
2009 | 3 | 420 | 1441,78 | ||
2 | 370 | 1270,14 | |||
1 | 332 | 1139,69 |
Especialista de informática Grau 1 | Nível | índice | Remuneração | ||
2009 | 3 | 540 | 1853,71 | ||
2 | 480 | 1647,74 | |||
1 | 420 | 1441,78 |
Ora, o salário mínimo nacional tem galopado trilho acima para fazer frente as dificuldades acrescidas que as famílias sentem desde a troika, pandemia e agora guerra. Contudo, a mesma atenção para com as restantes posições da tabela remuneratória da administração pública não se tem verificado. Como anteriormente apresentei [4] a tabela remuneratória extraída da dgaep [5], volto a faze-lo de modo a comparar atualmente os valores da remuneração face ao salário mínimo nacional e indexante.
Torno a trazer o técnico de informática que em 2009 recebia 2,53, hoje ano de 2023, o mesmo funcionário recebe, 1,60 SMN, a redução é óbvia 0,93 partes do SMN que equivale a uma perda de 706€. Se reportar esta perda para o ano de 2009, seria o mesmo de escrever que o Técnico de Informática receberia, 720€ de remuneração, quando o SMN nacional era de 450€.
É demais evidente o assalto que tem sido perpetrado contra a carreira de informática da administração pública em virtude do aumento do SMN e do congelamento do indexante para a Carreira.
Técnico de informática Grau Nível 1 | ||||
Ano | Salário Mínimo | Indexante | Remuneração Relativa ao SMN | Variação SMN % |
2009 | 450 | 343,28 | 2,53 | 0 |
2023 | 760 | 342,28 | 1,60 | – 93% |
A tabela é demonstrativa da perda de poder de compra e das dificuldades acrescidas que comportam esta real redução do salário. É um exercício interessante tentar perceber a razão do índice 100 não ter sido atualizado tal como foi atualizado o SMN e assim transversalmente à administração pública, reduzir o poder de compra de todos os trabalhadores da AP. A troika congelou a progressão do país e as carreiras de toda a administração pública, usou-nos para salvar a banca e passado anos o indexante continua a ser 342,28. Em proporção, ao salário Mínimo nacional de 20023 seria
Ano | Salário Mínimo | Indexante | Indexante em proporção |
2009 | 450,00 | 343,28 | 343,28 |
2023 | 760,00 | 343,28 | 580,52 |
Continua esclarecedor a diferença entre o justo e o índice 100 de 343 euros .
Como nem só de euros vive o homem, também vivemos na carreira de informática de atribuições. Provavelmente terá ouvido falar ou lido sobre alguns temas da moda, Regulamento Geral de Proteção de Dados, RGPD [6], Regime Jurídico de Segurança do Ciberespaço, RJSC [7], a Lei de acesso a documentos administrativos LADA [8], a classificação ASIA [9], a CiberSegurança, os ataques, o ransomware, o trabalho remoto, a pandemia.
De um momento para o outro, em pleno estouro da pandemia, os serviços da administração pública migraram para o conforto do lar. Grande parte dos trabalhadores continuaram e bem a executar as suas funções que até então eram desempenhadas no local de trabalho e espaço atribuído, em casa. Toda esta magia, todo este esforço deveu-se não as empresas que parasitam a administração pública, mas sim aos informáticos da carreira de informática, que por amor à causa, fizeram tripas coração, para os seus serviços, para os serviços públicos continuassem a fluir dentro do possível sem incremento de custos operacionais. Cada informático é responsável por ter mantido o barco da administração pública com ritmo e com direção. Nada do que se passou em pandemia teria sido possível sem o esforço herculiano dos informáticos da Administração pública. Se provas eram necessárias foram dadas.
A informática não é como um simples dente de uma roda dentada, mas sim o veio que deve ser oleado e revisto periodicamente. É assim que o Governo deve olhar para esta carreira. Vemos, a cada dia, uma preferência sem nexo pela externalização dos serviços em detrimento da massa humana que existe na carreira de informática. Se provas eram necessárias para demonstrar a excelência dos quadros da carreira de informática, foram dadas em contexto de pandemia. Face à utilização de recursos internos, a externalização de serviços tem um custo visível muito maior e um custo invisível incalculável. Apostar no lobo que guarda o galinheiro nunca deu bom resultado para o agricultor. Será ingenuidade do governo apostar em quem fica com o conhecimento e é pago a um preço deveras superior que qualquer um dos quadros que integra a carreira de informática? Não se coloca neste desejo louco pela externalização dos serviços, questões como a soberania? Trazer para a discussão o RGPD, o RJSC e as perguntas, quem acede, como acede, porque acede durante quanto tempo acede aos dados, não deveria ser suficiente para perceber que a externalização é um caminho tenebroso? Confiamos nos outros e não nos nossos?
Com tanto chavão tecnológico que circula é simples perceber que as tecnologias também mudaram e evoluíram. A tecnologia de 2009, não é a mesmo de 2023. O trabalho do informático em 2009, não era mais intelectualmente desafiante que o trabalho em 2023. Pelo contrário, em 2023, temos toda uma legislação que não existia em 2009, temos a inteligência artificial cujo o impacto será semelhante à massificação da internet, temos os ataques cibernéticos constantes à administração pública, temos muito com que nos preocupar, mas temos igualmente um conjunto de necessidades e competências que foram sendo adquiridas e postas em prática numa base diária que fazem com que as instituições não parem de prestar serviço público. O informático da administração pública é muitas vezes Responsável pela segurança informática ou ponto de contacto permanente, figura criada pelo DL 65/2019, nesta última com disponibilidade 24 sobre 7, por imposição legal. Sim, 24 sobre 7, os informáticos da carreira de informática recebem alguma compensação pela sua eterna disponibilidade? A resposta é não. O atropelo à legislação não acontece só noutras carreiras da administração pública, acontece na carreira de informática. Qual é o informático que nunca foi contactado após horário laboral para resolver um problema no servidor, autorizar a passagem de um e-mail que caiu no SPAM ou verificar a limitação de espaço na nuvem corporativa? A disponibilidade, a vontade, os sentidos de missão sempre estiveram presentes. O governo não o reconhece no informático de carreira.
As atribuições do Responsável pela segurança são imensas, o DL 65/2019 assim o dita, Plano de segurança, inventário de ativos, análise de risco, reporting constante para o Centro Nacional de Cibersergurança. Uma carreira que não para de receber atribuições e está em constante mutação, é inegável a evolução tecnológica, é inegável o esforço necessário ao acompanhamento dessa evolução, o governo continua a negar-nos salário justo por todas essas atribuições, olha-nos como se o trabalho fosse simplesmente, ligar e desligar o botão. Nada mais errado. O certo é, a redefinição da carreira de informática e criar a quem executa as funções de Responsável pela Segurança Informática, que é encarregado da proteção de dados pessoas à luz do RGPD, um percurso paralelo, justo e que seja benéfico para as organizações. Com todas estas valências, com estas atribuições, o governo propõe que cada informática perca em média 1,5 SMN de remuneração, cerca de 1000€. Quem pode tolerar tal provocação?
Não ficamos por aqui , dia 1 de junho de 2023 o governo no boletim de trabalho e emprego publica a sua proposta de revisão da carreira. Se até aqui, o principal argumento é o magro salário para o excesso de atribuições, de dia 1 em diante, a juntar a estes questões o governo fez a magia de esmagar a carreira de informática, assassinando por completo a figura central da carreira, o informático, quer técnico, quer especialista. O governo propõe a passagem de uma carreira pluricategorial, para unicategorial. Uma carreira alinhada com a carreira de técnico superior, no caso de especialista de informática e assistente técnico no caso de técnico de informática, sem qualquer diferenciação significativa para o especialista e diferenciação negativa para o técnico. Estranho é que na proposta apresentada pelo governo, cito «as carreiras comportam conteúdos funcionais distintos dos previstos para as carreiras gerais, diferenciando-se destas pelo nível superior de exigência que caracterizam as suas atividades e pelo dever de atualização permanente que o exercício das respetivas funções impõe.». Se o próprio governo escreve que a carreira de informática é diferente da carreira geral pelo nível superior de exigência, pela atividade e pela atualização constante, como é possível apresentar uma proposta remuneratória, igual ao que existe na carreira geral de técnico superior para o especialista de informática. Se a exigência assim o obriga, o salário deve de acompanhar a exigência.
Pretende o estado que trabalhemos com excelência, atualização constante e nível superior de exigência com salário geral? Pretende o estado que os informáticos de carreira migrem para a carreira geral? Não traz benefícios para o trabalhador contrapondo esta proposta, mas traz prejuízo muito avultado para as entidades que seriam obrigadas a externalizar muitos dos seus serviços se pretenderem manter a qualidade do serviço que hoje praticam.
A proposta do goveno não termina, passa uma borracha na figura de coordenador, deixa mesmo de existir na proposta. Quem o é atualmente, quem gere equipas, quem desempenha as funções cessa de imediato no momento de entrada do diploma. Novamente uma pergunta se levanta, quem executa as funções. O informático não o é certamente. O governo continua, eliminando o artigo nº20 da lei 97/2001, que permite o pagamento por tempo complementar de 12,5% do salário. Claramente, com esta proposta, a tutela pretende transformar a carreira de informático num trabalho das 9 as 17:30, quando os sistemas e serviços operam 24×7. É como mandar recolher todas as forças de seguranças 17:30; é fácil imaginar o caos que se geraria. A senda da destruição continua: na definição de funções é perceptivel que quem redigiu esta proposta não diferencia um sistema de autocolante. Numa época conturbada, com grande parte da AP a trabalhar em casa devido à pandemia, com os ataques informáticos constantes, não existe uma única linha sobre cibersegurança, proteção de dados ou mesmo inteligência artificial nesta proposta de 2023. Pergunto, como é possível que a definição de funções de 2001 esteja melhor adequada a 2023 do que uma declaração de funções redigida em 2023. Não sei onde os sistemas informáticos da AP vão parar, mas sei onde o dinheiro que será gasto em serviços externalizados vai parar.
Resta-nos parar.
[1] https://www.pordata.pt/portugal/evolucao+do+salario+minimo+nacional-74
[2] https://www.dgaep.gov.pt/upload/SRetributivo2009/Carreiras_Categorias_Nao_Revistas_de_Regime_Especial_Remuneracoes_2009.pdf
[3] https://www.dgaep.gov.pt///upload/catalogo/SRAP_2023_20230421.pdf
[4] https://www.dgaep.gov.pt///upload/catalogo/SRAP_2023_20230421.pdf
[5] Direcção-Geral da Administração e do Emprego Público
[6] https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32016R0679
[7] https://dre.pt/dre/detalhe/lei/46-2018-116029384 e https://dre.pt/dre/detalhe/decreto-lei/65-2021-168697988
[8] https://dre.pt/dre/detalhe/lei/26-2016-75177807
[9] https://arquivos.dglab.gov.pt/wp-content/uploads/sites/16/2016/03/ASIA_Doc-metodologico2016-03-10.pdf